quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MAS PRA QUÊ CONSCIÊNCIA NEGRA?


Imagine-se chegando de viagem numa grande cidade a noite. Após deixar o avião, toma um táxi e ruma para um hotel. Um luxuoso hotel. Chegando ao referido estabelecimento você fica sabendo que há leitos disponíveis, porém não permitirão a sua entrada.  Razão: a cor de sua pele.

Foi o que ocorreu com duas mulheres negras em 1951, barradas numa noite fria de junho por funcionários de um hotel paulistano. Só que a coisa fedeu, as vítimas eram duas cidadãs estadunidenses: a soprano Marian Anderson, famosa cantora e militante pelos direitos dos negros nos Estados Unidos e a renomada bailarina, coreógrafa e etnógrafa Katherine Dunham, considerada a “mãe” da dança moderna, mais tarde, mentora de Mercedes Batista, a pioneira da dança afro no Brasil. Chamaram a autoridade policial. Nada se pôde fazer. Não havia lei que punisse discriminação racial no país. Why? Como assim? Oh my God! O país com maior população negra fora da África não tinha uma legislação sobre agressões raciais?

E o assunto deu pano pra manga. O estardalhaço das artistas afro-americanas, repercutiu lá fora, causou um mal estar diplomático e no mês seguinte, a toque de caixa o deputado mineiro Afonso Arinos, da UDN (União Democrática Nacional), apresentou, mais por motivações políticas do que questões humanitárias, um projeto de lei que incluía ofensas de ordem racial entre as contravenções penais sendo promulgada em 03 de julho de 1951 por Getúlio Vargas (o mesmo a quem Arinos pediria a renúncia num duro pronunciamento, duas semanas antes do fatídico suicídio no Catete).

A primeira lei de combate ao racismo no Brasil – aprovada mais de meio século após a abolição, acabou levando o nome de um político conservador, pouco alinhado com o clamor dos movimentos sociais. Embora já imortalizado por causa da tal lei, o também escritor Afonso Arinos, sete anos depois, em 1958, vestiria a farda de imortal da ABL.

Porque nada foi feito antes sobre a questão do racismo recorrente no país. Por que foi preciso que negros norte-americanos, já calejados com essas situações segregativas e excludentes, sofressem numa noite, o que brasileiros sofriam no dia-a-dia por séculos. A resposta a essas perguntas é a mesma. Faltava ao negro brasileiro um ingrediente: CONSCIENTIZAÇÃO.

É claro que muitos negros bradavam contra opressão racial cotidiana no Brasil. E isso, bem antes da Lei Áurea. As autoridades tratavam com mais discriminação quem as procurasse. A mídia não dava voz a essa camada da população e o discurso espúrio de ‘é apenas impressão de sua parte, no Brasil não há racismo’ era a amordaça oferecida. A Lei Afonso Arinos só foi sancionada por causa da visibilidade internacional do ocorrido, mais como um amparo legal contra os ‘esporádicos’ casos de agressão racial, tratados sempre como casos isolados.

Chamamos a atenção para a postura de Duhan e Anderson, encarando como inadmissível aquela ocorrência. Pelo fato de não lerem em português, acaso o táxi passasse pelas ruas do Bixiga, região central de São Paulo, não perceberiam os cartazes em muito sobrados com dizeres: ALUGA-SE QUARTOS, MENOS PARA PRETOS, ou VAGAS PARA EMPREGO – PESSOAS BEM AFEIÇOADAS, (sabemos do teor racista dos critérios dessa boa feição) placas dessa natureza podiam ser vistas até o início dos anos de 1980.

Foi erguida toda uma estrutura para que o negro não tivesse CONSCIÊNCIA de sua condição adversa. E de seu valor, de seu poder, daí as campanhas contínuas com respaldo do Governo de depreciação de tudo aquilo que caracterize o negro e suas origens, demonizando e inferiorizando todos os aspectos culturais identitários, desde os Códigos de Conduta do Brasil Império, até os meados do século XX. Sim, existe a pertinência de se ter uma data para celebrar a CONSCIÊNCIA negra no Brasil.

Nessa semana, como em anos anteriores, espocaram via internet nas redes antissociais, os mesmos comentários questionando do porquê de haver dia e a Semana e o Mês da CONSCIÊNCIA negra.

‘Ah, seria melhor Dia da Consciência Humana’

‘Se fosse Dia da Consciência Branca seria racismo’

‘Consciência Negra é todos os dias’

Essa última repetida por alguns setores do Movimento Negro (muitos ainda se enganam e encaram as movimentações coletivas como grupos homogêneos). Nessas frases acima se verifica o temor de uma segregação (o mesmo temor dos anti-cotistas e de setores conservadores da sociedade, nos idos de 1950, se rebelando contra a Lei Afonso Arinos e seus desdobramentos). 


Nos dias correntes há uma ala conservadora que levanta o mesmo argumento a cerca da Lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura da África e afro-brasileira em todas escolas, como a reivindicação estapafúrdia de se querer o ensino da História da Itália, da Alemanha, do Líbano e do Japão, pois imigrantes desses países deram seu contributo no mosaico cultural brasileiro. Reações contrárias em jornais influentes e em pronunciamentos no Congresso acompanham toda e qualquer, e mínima conquista da população negra. Desde a Lei do Ventre Livre até os recentes Editais para Produção Cultural do Ministério da Cultura, passando por leis como a descriminalização do candomblé, de autoria do deputado Jorge Amado, pelo Partido Comunista ou a Lei Caó, que retirava a injúria racial do patamar de simples contravenção e a elevava a crime inafiançável e imprescritível e as Políticas de Ações Afirmativas.

 O que mais impressiona é a permanência do discurso que se repete ‘os negros querem regalias’, ‘há assuntos mais sérios para debater’, ‘os negros adoram o papel de vítimas’, ‘isso irá dividir o país’, e a melhor: ‘mas, isso fere a Constituição’, que pregava que todos os brasileiros eram iguais, argumento esquecido quando se legislava para restringir os direitos dos mesmos negros.

Esses comentários engraçadinhos sobre o feriado da Consciência Negra (brasileiro é o povo que mais adora feriado, e se puder enforcar um dia a mais, prolongando o fim de semana, melhor ainda, curiosamente, reclama por mais um feriado - o único que gera reclamação) revelam um desconhecimento das razões de se arrogar no Brasil uma CONSCIENTIZAÇÃO dos negros, induzidos por muito tempo a alienação e negação, muitas vezes em níveis inconscientes e subliminares, dos elementos de sua identidade. 

Ignoram também que num país multicultural, formado por diferentes grupos étnicos, cada qual tem suas especificidades, cada qual tem a sua demanda e cada qual tem o seu percurso. E é conhecendo o percurso histórico da condição do negro e descendente no tecido social brasileira é que se poderá se expressar com razoabilidade, fugindo das escaramuças do senso comum que reproduz teoremas dos achólogos de cátedra.

Muitos os fazem sem maldade, vejo pessoas de bem e instruídas, mães e pais de família que sem perceber estão introjetando aos jovens filhos, que a tudo, acompanham, valores deturpados, fomentadores de intolerância. Muitos desses bons cidadãos (se expressar é um ato de cidadania) não tiveram a chance de estudar a História e a Cultura afro-brasileira e desconhecem os mecanismos adotados pela nossa sociedade para ‘embraquecer’ a face negra do Brasil, embalada pelo mito da harmonia racial, enaltecendo a mistura de raças e policromia do povo brasileiro (mistura que não se dava e nunca se deu nos altos escalões do poder, não interditados aos com feições caucasianas).



Talvez por viverem num país onde a tensão racial é explícita, Marian Anderson e Katherine Dunham estavam conscientes dos mecanismos acionados pela exclusão racial. Talvez por isso tenha causado estranheza ao ator Morgan Freeman (justo ele que tem como nome  o epíteto  Freeman/ homem livre, dado nos Estados Unidos a escravos libertos, o correspondente ao nosso preto forro) a pergunta sobre o Mês da CONSCIÊNCIA Negra. Para um negro americano isso não tem cabimento. Pra quê celebrar, pra quê datar algo que já está arraigado organicamente no interior de cada negro. Eles vivem dia a dia, desde o berço, a CONSCIÊNCIA negra.
  
 Sim, o Dia da CONSCIÊNCIA  NEGRA é uma conquista.


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