sábado, 13 de setembro de 2014

Legbaraiá ô!

Chega aos cinemas agora em setembro o filme 'Rio de Janeiro, Eu Te Amo', uma sequência de curtas-metragens ambientados na Cidade Maravilhosa, dirigidos por vários diretores, entre brasileiros e estrangeiros, e um grande elenco. Inevitável não lembrar da polêmica envolvendo a  Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, na pessoa do Cardeal Dom Orani Tempesta e o cineasta José Padilha (Tropa d Elite I e II, Robocop) diretor  de  'Inútil Paisagem' que traz o ator Wagner Moura como um instrutor de asa-deltas que num sobrevoo pela a Pedra Bonita medita sobre questões existenciais e desabafa com o Cristo Redentor, ato que foi considerado desrespeitoso pelos religiosos, ameaçando proibir o uso da imagem da estátua.

O que na sequência me levou a lembrar de outro episódio sobre os paradoxos e ambiguidades do Estado laico brasileiro e a sua relação com a Igreja Católica envolvendo a estátua do Cristo Redentor, dicotomicamente, monumento turístico, simbolo nacional, elemento da identidade carioca e imagem sacro-religiosa, no que diz respeito a proibição da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis desfilar com uma alegoria em seu carro abre-alas que reproduzia o monumento carioca, no carnaval de 1989.

O enredo desse carnaval foi o sugestivo 'Ratos e Urubus larguem a minha fantasia'


O atrito entre Estado e Igreja envolvendo a estátua do Cristo se deve pelo fato do monumento ter sido erguido numa área cedida pela União à  Arquidiocese do Rio , nos anos 1930. O acesso ao Redentor é feito através  do Parque Nacional da Tijuca, propriedade do Governo Federal. No caso do filme o Ministério da Cultura interveio e a Igreja Católica recuou e autorizou o uso da imagem.

Essa ingerência de setores ligados a grupos religiosos em manifestações artísticas tem retroalimentado o debate sobre a laicidade no Estado brasileiro.

A Beija-Flor que conquistou muitos títulos do carnaval carioca ultimamente, tem no desfile de 1989, o qual ela não se sagrou campeã, como um dos momentos mais marcantes de sua vivência no universo do samba.

Quando a escola de Nilópolis adentrou na avenida na manhã daquela terça-feira, 06 de fevereiro, o última vez que teria Pinah como  sua passista-destaque,  o público não podia imaginar o que estava por vir ( e faltava ainda o desfile da Império Serrano com um enredo sobre Jorge Amado, o primeiro samba de Arlindo Cruz na passarela). Querendo responder aos que lhe criticavam por sua estética suntuosa, com carros alegóricos colossais e fantasias exuberantes, no sentido de sua frase lapidar: 'quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de luxo', o carnavalesco Joãosinho Trinta e o seu 'do lixo ao luxo' encantou a plateia atônita com as alas de mendigos que invadiam a Marquês de Sapucaí. Nunca é de mais lembrar que o público estava ainda extasiado com o desfile da União da Ilha no dia anterior, na ressaca de um verdadeiro 'porre de felicidade que sacudiu  e zuou toda a cidade', versos inesquecíveis de Franco Lattari, um dos maiorais do samba de enredo da década de 80, autor de sete sambas enredos da agremiação insulana. Bujão e J. Brito também assinaram esse samba, cujo enredo era Festa Profana.




 Naquela segunda-feira, a Beija-Flor sucedia as coirmãs Portela, Unidos da Tijuca, São Clemente, Estácio de Sá, Unidos de Vila Isabel (que defendia o título) e a Imperatriz Leopoldinense que se sagraria campeã, numa apuração tete a tete com a mesma Beija-Flor. O enredo da alviverde de Ramos foi o seu antológico "Liberdade!Liberdade! Abre as asas sobre nós', que recentemente se tornou o primeiro samba de enredo a ser tema de abertura de uma a novela. 'Lado a Lado' da Globo.

Os excelsos representantes da Madre Igreja não admitiriam a associação da imagem do Cristo Redentor a uma festa mundana e libidinosa. "Carnaval, festa da carne!" diriam talvez, ecoando no silêncio das sacristias e esqueciam que o simpático Karol Wojtila, o Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980 lamentou o fato de não poder assistir a um desfile de escola de samba.

O chamado Cristo Mendigo, veio para a avenida coberto por um enorme plástico com os dizeres em letras garrafais 'MESMO PROIBIDO, OLHAI POR NÓS', iniciativa do diretor de carnaval  Laíla, e não do carnavalesco Joãosinho Trinta, como muita gente crê.

Mas o que mais me chamou a atenção nisso tudo, não foi a pendenga com o filme do Padilha, nem a implicância diocesana com o carnaval nilopolitano. E sim foi a justificativa do jurado de samba-enredo João Máximo, jornalista e crítico musical, que retirou o título merecidíssmo à Beija-Flor; ela e a Imperatriz Leopoldinense terminaram a apuração empatadas, ambas com 210 pontos e o quesito de desempate era o samba de enredo. A Imperatriz obteve 30 (dez barra dez) e a Beija 29, perdeu 1 ponto porque o citado jurado considerou que o refrão Legbara ô/ ô ô ô/ Legba ô Legabará/ laiá laiá, não tinha relação com o tema proposto, sem saber que os versos aludem a Exú, o donos das encruzilhadas, protetor do povo das ruas, também chamado de Legba, Legbara, Elegbara e Eleguara, tudo haver com o enredo, demonstrando o descompasso entre a cultura popular e os saberes afro-brasileiros e o pensamento elitista dos intelectuais que passou a dominar a festa popular (e eminentemente negra) que é o Carnaval carioca.

O citado jurado, por incrível que pareça, nos idos de 1966, foi um dos autores do livro 'O negro no Brasil', lançado no Festival de Arte Negra, em Gana.


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