sábado, 19 de abril de 2014

Num sábado de Aleluia


Era um dia de sábado. Ensolarado. Sábado risonho. Sábado festivo. Sábado de Aleluia. Maldito! Traidor! Maldito! O corpo era arrastado com violência pelas ruas de terra de Belém. A corda no pescoço denunciava o seu fim. Seria enforcado. Sem clemência. Munidos de ripas e pedras, arrastavam o corpo inerte. Nuvens de poeira seca se erguiam. Pedriscos e cascalhos saltitavam. Folhas caídas da macieira farfalhavam. Maldito! Traidor! Lincha! Lincha! Berravam num coro de vozes dissonantes. Traíra! Traidor! Lincha! Malha! Uns pisoteavam. Outros tripudiavam. Alguém escarrou. Um outro urinou. Esperem! Cadê o querosene? Esqueci... Pra quê querosene??? Oras, botar fogo no safado assim que terminar o linchamento... Deixa que eu pego o álcool, eu moro aqui perto (interveio o ruivo, de cabelo em caracóis e acnes no rosto ) Então vá! Vá ligeiro. Traga também a caixa de fósforo ou a pederneira... A marcha estancou.Era um dia de sábado. Sábado de Aleluia. No chão imóvel, o boneco-de-judas. Os garotos esperavam o líquido inflamável para atear no ignominioso boneco. Alguém arrancara a foto do rosto de um político corrupto (de uma dessas Veja-isto é- época's que se acumulam nas mesas-de-centro dos consultórios odontológicos) e a colou na face do apóstolo infeliz. Alvo do escárnio e do desprezo dos mais caritativos cristãos por dois milênios... Ofegantes, agitados, impacientes... Esperavam em frente a um sobrado. Do varandão a caixa acústica propagava uma mensagem de reflexão. Era um dia de sábado. Sábado festivo. A voz suave de barítono do locutor da rádio narrava passagens bíblicas tendo ao fundo uma doce melodia. A caixa acústica ditava: Então o Mestre fitou a multidão enfurecida e indagou - há alguém dentre vós que jamais haverdes cometido um erro? Se houver um que nunca cometera um pecado, atirai a primeira pedra..... Os meninos se entreolharam... o ruivo, cabelos em caracóis e acnes no rosto trazia o querosene. Pegara escondido da mãe. Há coisas que garotos não podem ficar manuseando... Dera tempo de ouvir o final da mensagem. Um deles deixou desprender-se do vão dos dedos a pedra que trazia. O outro o pedaço de pau. Um outro um neca de tijolo. E um a um foram se desfazendo de seu arsenal de improviso. O ruivo, o de cabelo em caracóis e acnes no rosto girou sob os calcanhares. Cabisbaixo, balbuciou um 'deixa quieto!'

Era um dia de sábado. Sábado ensolarado nas ruas de terra de Belém. Não Belém da Judeia, Oriente Médio. Belém do Pará, Brasil.
Ricardo Bispo


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