terça-feira, 29 de outubro de 2013

Seu Leitão Fanfarrão, o Forreste Gump do Irajá

 
O ator Dan Stulbach, Tom Hanks brasileiro

No partido-alto, “Ganzá do Seu Leitão”, coautoria de Cleber Augusto, Nei Lopes sintetiza na personagem principal, tanto a memória de seu pai, Luiz Braz, como a de sua mãe, Dona Eurídice Leopoldina, além de Dayr, conhecido por Noco, um de seus irmãos mais velhos.

Ouça o samba na voz de Roberto Ribeiro aqui: http://grooveshark.com/#!/search/song?q=Roberto+Ribeiro+O+Ganz%C3%A1+do+Seu+Leit%C3%A3o
Os elementos afetivos recolhidos em seu núcleo familiar, compostos de narrativas e vivências dos “mais velhos” embutidas nas recordações de infância são os ingredientes de Nei Lopes para confecção de quadros musicais do passado. Daí a historicidade que permeia sua produção musical (Coisa da Antiga, Epopeia de Zumbi, Tempo de Dom Dom, Sapopemba e Maxambomba, Goiabada Cascão, Compadre Bento e outros).
O recurso de identificar um agente social do passado na figura de um antepassado, depositário de vivências e visões de mundo legadas à posterioridade, atua como fio condutor para que o eu lírico de Nei Lopes crie um vínculo indissolúvel (consaguinidade, descendência) entre presente e passado, sendo o “hoje”, herança e consequência direta do “ontem”, o que introduz a pessoa do narrador ao discurso. E que opera para uma noção de integração e sentido de pertencimento, legitimando de forma incontestável sua denúncia sobre a  opressão e exclusão (muitas vezes sutil) dos negros na sociedade brasileira.
A figura do “mais velho” é uma simbologia e exerce a função de instrumento ideológico para a construção e afirmação identitária, encadeando fatos históricos - dando vazão à afetividade das recordações, em forma de canção num “rejunte” para a consolidação da identidade. Conviveu, ele, em sua infância no Irajá, subúrbio do Rio, com gente que havia vivido a escravidão e que contavam causos do tempo do cativeiro. Acervos vivos de uma história valiosíssima. Nessa viagem ao passado longínquo em busca de uma ancestralidade africana, Nei resgatará nessas pessoas a memória de sua ascendência negra familiar, a qual não pode conhecer pessoalmente. Raízes profundas de sua árvore genealógica. Negras raízes de um baobá.
Sobre esse aspecto, Cosme Elias, autor de uma tese de Doutorado sobre a obra de Nei Lopes, pontua: “É uma referência mítica, arquitetada no sentido de afirmar uma identidade, construir um ambiente imaginário em que a figura do mais velho se apresenta como sustentáculo desse ‘ser’ carioca e principalmente negro”

O Seu Leitão do samba é uma espécie de Forrest Gump, “O contador de histórias”, personagem vivido por Tom Hanks no cinema em 1994, o que lhe rendeu um Oscar e um Leão de Ouro como melhor ator. A produção também ganhou essas estatuetas como Melhor Filme e Robert Zermerkis, Melhor Diretor, além de outras tantas premiações. “O contador de histórias” é uma fábula moderna, baseada no romance homônimo de Winston Groom. Forrest se torna protagonista e testemunha ocular de eventos marcantes da história norte-americana do século XX: combateu na Guerra do Vietnã, participou, ao lado de Broadway Joe, da campanha vitoriosa do Alabama, campeão do futebol americano em 1961; integrou a seleção dos EUA de tênis de mesa; conheceu John Lennon e o inspirou a compor “Imagine”; foi recebido na Casa Branca por vários presidentes, como Lyndon Johnson, John Kennedy e Robert Nixon, com este último vivenciaria o famoso “caso Watergate”; conheceu Elvis Presley e as tentativas estabanadas de Forrest em dançar, dificultado pelos aparelhos que usava nas pernas, inspiraram os movimentos tresloucados que depois consagrariam o Rei do Rock.
Se a saga de Forrest abrange quase 4 décadas da história estadunidense, a do Seu Leitão, cobre 6 décadas da nossa história, pois a narrativa inicia no ano da Abolição da escravatura, quando o protagonista nasce e se encerra em 1950, com o “Maracanaço”. Esse samba é também uma fábula moderna. Seu Leitão pegou a gripe espanhola, andou em bonde de burro, participou das lendárias rodas de samba e pernada na Praça Onze; folião infatigável foi figura proeminente nos ranchos carnavalescos Ameno Resedá e o Kananga do Japão, que antecederam às escolas de samba; e assim como Forrest foi ao front, combateu nas duas Grandes Guerras, e brilhou também nos desportos, foi zagueiro da Seleção Brasileira em 1938 na Copa  da França e na copa seguinte, realizada no Brasil presenciou o fiasco do time nacional.
Em depoimento ao jornalista Fernando Faro, Nei Lopes revelou que seu pai nasceu em 1888 e era íntimo de Santos Dumont (íntimo não por amizade e sim por contemporaneidade), o que Nei transporta para sua personagem nos versos “Seu Leitão nasceu no ano em que acabou a escravidão/Conheceu Doutor Alberto, o inventor do avião”, na mesma estrofe ele afirma que Seu Leitão “viu o enterro do Barão” e no mesmo depoimento ele conta a Fernando Faro que sua mãe lhe falava sobre o enterro do Barão do Rio Branco.
Nei manuseia as lembranças de sua infância como um metódico historiador a garimpar fontes documentais em um arquivo. Suas memórias emocionais são de fato a matéria-prima para a base textual de muitas de suas criações musicais.

Ainda o samba em análise, Nei Lopes menciona a Oswaldo Faustino, seu biógrafo, que seu irmão mais velho, Dayr, esteve na 2ª Guerra Mundial, assim como o protagonista do samba, o presepeiro Leitão: na Segunda Grande Guerra deu três tiros de canhão”.
Apesar da semelhança entre as epopeias de Seu Leitão e de Forrest Gump, cabe a ênfase da originalidade e anterioridade do samba do Nei, gravado por Roberto Ribeiro em 1983. O romance de Winston Groom só seria publicado em 1986. Nei Lopes reeditou esse samba dividindo os versos com o MPB-4, no álbum De Letra & Música, em 2001.

Ouça a versão com Nei Lopes e MPB-4, aqui:http://www.sambaderaiz.net/de-letra-e-musica-nei-lopes/

Extraído do livro “O ABC de Nei Lopes, o samba na aula de História”, a ser publicado, do mesmo autor desse artigo.
Autor: Ricardo Bispo
REFERÊNCIAS:
ELIAS, Cosme, O samba do Irajá e de outros subúrbios. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, página 124 
FAUSTINO, Oswaldo, Nei Lopes, Retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo   Negro, 2009, páginas 98  a 102.

 FILHO, Rubens Ewald , O Oscar e eu, São Paulo: Cia Editora Nacional, 2003.


LOPES, Nei,  A música brasileira por seus autores e intérpretes, Vol. 8. CD nº 8 – SESC, São Paulo (Tv Cultura de Programa Ensaio de 2003 - Entrevista realizada 11/11/2003 por Fernando Faro).


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