terça-feira, 2 de julho de 2013

NA MADRUGADA DE UM DOMINGO CHUVOSO

 Conto vencedor da etapa municipal do Mapa Cultural Paulista 2013/14, por São Vicente



Norton despertou num sobressalto. Que explosões seriam aquelas? Seria um pesadelo? Chovia ainda? Sim. Tateou o criado-mudo à cata do celular. A luz de LED do visor do telefone iluminou momentaneamente o quarto. Duas da manhã e ainda chovia. Caracoles! E chovia forte – o ritmo das bátegas da chuvarada que percutiam sobre o toldo da lan-house lá embaixo lhe confidenciava. Teria que voltar a dormir. Levantaria às sete. Levantar de manhã em pleno domingo é dose pra leão doido. Ainda mais um domingo chuvoso. Domingo friento.

Era chuva de vento. A porta galvanizada de uma estamparia, noutro quarteirão, arfava ruidosamente ao ser distendida pela ventania incessante. Boom! A mesma explosão do sonho. Não! Não era sonho. Não era explosão. Norton se lembrou, e lamentou, a porta do banheiro do andar debaixo que esquecera destravada e agora se debatia aos influxos da corrente de ar. Bah! Nada nesse universo lhe retiraria do quentinho aconchegante daquele edredom. A sinfonia percussiva da chuva prosseguia lá fora. Aprazível e hipnotizante. Relaxante, tamborilando sobre o toldo de policarbonato da lan-house. Como é gostoso dormir com o barulho da chuva. Faltava apenas ela. Ali naquela cama! Agarradinhos em conchinha, pés entrelaçados, os caracóis de seus sedosos cabelos ora lhe afagando, ora lhe fazendo cócegas, ora lhe sufocando. Sob a harmonia melódica da chuva... Boom! A bendita da porta!!!

Impossível pegar no sono novamente com aquele bate-bate intermitente. Ok, você venceu, batatas fritas! Norton ergueu-se, contrafeito, cambaleante, envolto na colcha, caçando com os pés a sandália embaixo da cama. Ah, vou só de meia mesmo, decidiu. Raios riscavam o céu e seus clarões se acendiam na parede do quarto, oposta à janela, como se fossem flashes fotográficos. Largou a colcha sobre o leito desgrenhado e vestiu o velho  casaco que pendia da cabeceira da cama. Desceu as escadas zonzo como um morto-vivo, trancou a porta deselegante e voltou pro quarto. Pôs-se a espiar, pelos vãos da persiana, a rua desértica lá fora.

Desembaçou o vidro opaco da janela com uma das mangas do casaco. Constatou, de encontro à luz do poste, a intensidade da chuva que, compacta, caía em diagonal.

Rasgando a solidão daquela rua a carcaça de um guarda-chuva passou tropicando aos safanões da ventania. As abas esvoaçantes do tecido preto que se desprenderam das varetas tremulavam no ar à imagem de um batman arrastado pela ira de um tufão. Herói impotente. Guarda-chuvas destruídos em meio a um temporal são como heróis impotentes.

Norton semicerrou os olhos e percebeu, lá longe, na orla da praia, o vulto das palmeiras pescoçudas envergadas pelo vendaval. Imaginou a bandeira gigante do Brasil com seus mais de cem quilos estufando, como um lenço de abano, no mastro imponente no pico do Morro dos Barbosas. De volta a sua rua, o facho luminoso dos postes incidia sobre o asfalto molhado e taciturno e estendia uma faixa prateada, como se alguém desdobrasse no chão uma trilha de papel laminado picotado.

Entrecortando o zunido do vento o traquetralaque de uma latinha de cerveja vazia ou de refrí que vinha em cambalhotas, também arrastada pelo vento, se intensificou. Traquetralaque, traquetralaque. Vinha de longe. Do balcão de uma bodega noturna talvez. Traquetralaque, ou talvez de algum inferninho carregado de fumaças de cigarro, de berros orgíacos de despudoradas mulheres. Berros abafados pelo silêncio solitário de um poeta noctívago. Ou talvez de uma festa chata, pois festas em noite de temporal são chatíssimas. Traquetralaque.

Norton deitou-se na cama. Revirou-se na cama. Olhou o porta-retratos sobre o criado-mudo. 
Olhos ermos e tristes como as luzes solitárias da Ponte Pênsil que iluminava a Baía de São Vicente na escuridão liquefeita daquela madrugada. No porta-retratos ela. Sua Vênus de Milo. Sua Vênus Williams. Ali, na cama, só faltava ela.



4 comentários:

  1. Parabéns amigo!!! Cada vez mais versátil e inteligente.

    Que venha a próxima etapa!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Elson. E no próximo Mapa Cultural quero ver suas obras brilhando também

      Excluir
  2. Felicito o nobre poeta pela dedicação ao Aparato Cultural.

    ResponderExcluir

DÊ O SEU PITACO