Era um dia de sábado. Ensolarado.
Sábado risonho. Sábado festivo. Sábado de Aleluia. Maldito! Traidor! Maldito! O
corpo era arrastado com violência pelas ruas de terra de Belém. A corda no
pescoço denunciava o seu fim. Seria enforcado. Sem clemência. Munidos de ripas
e pedras, arrastavam o corpo inerte. Nuvens de poeira seca se erguiam.
Pedriscos e cascalhos saltitavam. Folhas caídas da macieira farfalhavam.
Maldito! Traidor! Lincha! Lincha! Berravam num coro de vozes dissonantes.
Traíra! Traidor! Lincha! Malha! Uns pisoteavam. Outros tripudiavam. Alguém
escarrou. Um outro urinou. Esperem! Cadê o querosene? Esqueci... Pra quê
querosene??? Oras, botar fogo no safado assim que terminar o linchamento...
Deixa que eu pego o álcool, eu moro aqui perto (interveio o ruivo, de cabelo em
caracóis e acnes no rosto ) Então vá! Vá ligeiro. Traga também a caixa de
fósforo ou a pederneira... A marcha estancou.Era um dia de sábado. Sábado de
Aleluia. No chão imóvel, o boneco-de-judas. Os garotos esperavam o líquido
inflamável para atear no ignominioso boneco. Alguém arrancara a foto do rosto
de um político corrupto (de uma dessas Veja-isto é- época's que se acumulam nas
mesas-de-centro dos consultórios odontológicos) e a colou na face do apóstolo
infeliz. Alvo do escárnio e do desprezo dos mais caritativos cristãos por dois
milênios... Ofegantes, agitados, impacientes... Esperavam em frente a um
sobrado. Do varandão a caixa acústica propagava uma mensagem de reflexão. Era
um dia de sábado. Sábado festivo. A voz suave de barítono do locutor da rádio
narrava passagens bíblicas tendo ao fundo uma doce melodia. A caixa acústica
ditava: Então o Mestre fitou a multidão enfurecida e indagou - há alguém dentre
vós que jamais haverdes cometido um erro? Se houver um que nunca cometera um
pecado, atirai a primeira pedra..... Os meninos se entreolharam... o ruivo,
cabelos em caracóis e acnes no rosto trazia o querosene. Pegara escondido da
mãe. Há coisas que garotos não podem ficar manuseando... Dera tempo de ouvir o
final da mensagem. Um deles deixou desprender-se do vão dos dedos a pedra que
trazia. O outro o pedaço de pau. Um outro um neca de tijolo. E um a um foram se
desfazendo de seu arsenal de improviso. O ruivo, o de cabelo em caracóis e
acnes no rosto girou sob os calcanhares. Cabisbaixo, balbuciou um 'deixa
quieto!'
Era um dia de sábado. Sábado ensolarado nas ruas de terra de Belém. Não Belém da Judeia, Oriente Médio. Belém do Pará, Brasil.
Era um dia de sábado. Sábado ensolarado nas ruas de terra de Belém. Não Belém da Judeia, Oriente Médio. Belém do Pará, Brasil.
Ricardo Bispo
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