Entrevista classificada pelo Nei como espetacular:
http://www.neilopes.blogger.com.br/2013_01_01_archive.html
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"Nei Lopes é o meu compositor preferido - é o letrista que eu queria
ser", quem disse isso foi Aldir Blanc (o Aldir da Garibaldi) no semanário
O Pasquim 21. O cara que rima baby
com Cunhambebe (No fundo do Rio, com Guinga), raiz com New Orleans (Primo do Jazz, com Magnu Sousà) e que faz samba de breque com
trechos em latim (Águia de Haia, com
Luis Felipe de Lima). É de fato um Número Baixo. Nei desafiou os teóricos da
Música Popular (que pregam que pro povão só se pode fazer músicas com palavras
corriqueiras) ao colocar o termo cópia
fotostática na letra de um partido-alto fazendo o Brasil inteiro cantar (Tempo de Dom-Dom).
Compositor-Centrum (de A a Zinco), Nei Lopes passeou
pelo alfabeto de intérpretes nacionais sendo cantado, de Agrião a Zeca
Pagodinho (isso pela ala masculina), e de Alcione a Zélia Duncan, (a ala
feminina). Escritor que tem se tornado referência nos estudos sobre cultura
afrobrasileira. Ainda mais nesse ano que completa uma década da promulgação da
lei que torna obrigatório em nossas escolas o ensino da cultura e da história
africana e afrobrasileira. O Velhote do Lote, como ele se autonomeia, bate um
bolão com a gente. Pegou a bola, jantou
Gualter, Mirim e Pinguela (canta ai Tantinho) e fez um gol de placa. Lembramos
o tempo em que Dom-Dom jogava na zaga do Andaraí.
Nesse agradável bate-papo falamos do principal interesse de Nei atualmente, a literatura, mas falamos também de sistema de cotas e racismo, direitos autorais, indústria cultural de massas, decadência do carnaval, religiosidade afro-brasileira, jongo, e claro muito samba. Confiram:
Nesse agradável bate-papo falamos do principal interesse de Nei atualmente, a literatura, mas falamos também de sistema de cotas e racismo, direitos autorais, indústria cultural de massas, decadência do carnaval, religiosidade afro-brasileira, jongo, e claro muito samba. Confiram:
DOM OU MAGIA - Pra
começar gostaríamos de satisfazer uma dúvida até por causa da sua obra
monumental. Em seu DVD, Toca Brasil,
há um belo número de Nilze Carvalho ao bandolim tocando Assanhado do mestre Jacob do Bandolim. Imaginamos que se tratou de
uma singela homenagem a esse ícone da nossa música popular, mas já que o DVD
era seu porque, a Nilze não executou Baía
de Luanda, de sua autoria com Humberto Araújo (que também estava no palco)?
Acreditamos que você é um dos casos únicos de compositor/letrista que compõe
música instrumental. E falando nisso, parabéns pela contagiante Na Gafieira, em parceria com Thiago
França.
NEI LOPES - Na época do DVD, o “Baía de Luanda” (parceria minha com Ruy
Quaresma, que o Humberto posteriormente gravou, sem letra) estava esquecido; e
a Nilze ficou á vontade para escolher a música de seu solo, sem maiores
preocupações. Acrescento que essa tua percepção de que eu faço música
“instrumental” é equivocada, pois toda música tem melodia; e pode ter letra ou
não. Eu não tenho em meu repertório nenhuma melodia sem letra. Mesmo porque eu
sou essencialmente um letrista.
DM –
Entendi, foi como a gravação de “Senhora Liberdade” pelo Grupo Choro na Feira
(Na cadência do samba, 2003), uma versão instrumental. Agora a pergunta que não
quer calar: há algum projeto de um segundo DVD? Seria mágico vê-lo cantar
sambas seus que tem tanto a tua cara e que ainda não há um registro de áudio na
tua voz (Boteco do Arlindo, Cabineiro, Malandro JB, Afoxé pra Logum, Jongueiro
Cumba, Laços & Pedaços, Sambista Perfeito, Maracatu do meu avô, Prisão
especial, Compadre Bento, E na intimidade, meu preto, Nega Mina, Laguidibá,
Jogo Rasteiro, Sapopemba e Maxambomba), vamos parar senão vai surgir aqui um
repertório.
NL - Assim como não sou um “compositor que compõe musica instrumental”
não sou um cantor e, sim, um autor que ocasionalmente interpreto minhas
canções. Confesso a você que meu sonho, mesmo, era ver uma seleção do meu
repertório gravada, em DVD ou CD, por grandes cantores, como Alcione, Emílio
Santiago, Fabiana Cozza e outros, que são cantores, mesmo.
DM - Nos
Anexos do livro O samba do Irajá e de
outros subúrbios, onde Cosme Elias se debruça sobre a tua obra há uma
galeria de fotos, a maioria do seu arquivo pessoal, tem uma que nos chama
atenção em especial. Estão no retrato você e os seus irmãos Tonga, Dica e
Mavile, era uma festa na roça nos anos 90. Você elegante de terno e chapéu
panamá. Por acaso foi essa fotografia que serviu de molde para a sua caricatura
para a capa do álbum De Letra &
Musica?
NL - Absolutamente, não! Aquela foto é uma brincadeira. E nós não estamos
absolutamente “elegantes” e, sim, “caipiras” (no meu caso, com roupas
antiquadas). A capa do “De Letra...” foi uma criação do Mello Menezes a partir
de uma outra foto, clicada pelo Bruno Veiga, em que eu apareço sambando. Era
uma foto exatamente para servir de base para o desenho, por conta da expressão
corporal.
DM - No
livro Canções do Rio você se
autodefine como um profissional da criação intelectual. Vamos refletir um pouco
sobre a questão do direito do autor. Com o advento do ciberespaço, o avanço das
tecnologias e as facilidades e barateamento das cópias de cd, muitos cantores
encaram o disco como mero cartão de visitas. É no show que se ganha dinheiro.
Nessa lógica, quanto mais se disseminar a musica, quanto mais piratearem ou a
baixarem em downloads gratuitos, melhor. Mais gente nos shows. E como fica o
compositor nesse quadro uma vez que a fiscalização do ECAD na maioria dos shows
e a respectiva distribuição de direitos de execução pública e de arena é bem
deficitária?
NL - Quando eu falo “criação intelectual”, eu abranjo tudo o que faço.
Tenho um volumoso repertório gravado; tenho mais de 30 livros publicados e uns
8 discos gravados; escrevo e publico artigos e outras espécies de textos; dou
palestras; canto em shows, ocasionalmente; e trabalho há 3 décadas na diretoria
da AMAR/SOMBRÁS, minha sociedade de gestão autoral. Daí, vêm o dinheiro com que
me sustento, que não é muito mas me permite levar uma vida digna.
DM - Os
primeiros episódios do “Programa Esquenta!” uma verdadeira roda de samba do
subúrbio, conduzido pela Regina Casé seria uma releitura do dominical Pagode,
que você apresentou - foi também roteirista, em setembro de 1987 na Rede Globo
(só o primeiro programa foi ao ar, pois executivos da emissora da época acharam
a proposta suburbana demais)? O Esquenta de início era pautado somente no
samba. Sofreu interferências (alegaram que tinha samba em demasia) e tinha que
se diversificar. Aí apareceram duplas do sertanejo universitário, o Calypso,
grupos de axé, funkeiros. O samba ainda incomoda, por quê?
NL - Os executivos da produção e da difusão musical, no âmbito das
gravadoras e das emissoras de TV e rádio são hoje, em sua maioria, pessoas
nascidas ou “formadas” após a década de 1970. Como, em grande parte, são
pessoas que entraram nesse mercado sem um embasamento histórico, sem estrutura
de pensamento para avaliar a importância da música que se fez no Brasil antes,
esses profissionais (muitos deles, músicos do segmento chamado “ie-iê-iê”)
fixaram os Beatles como marco; e a partir daí ajudaram a formar uma ação
cultural musical baseada numa estética que nega a brasilidade. Tudo o que
acontece hoje ainda é muito como conseqüência disso.
DM - Percebemos,
ultimamente, quando vão te apresentar (publicações jornalísticas, folders de
shows, etc) realçam suas parcerias com grandes nomes da chamada MPB (João
Bosco, Guinga, Fátima Guedes, Vitor Martins, Ed Motta, Zé Renato, Ivan Lins
além do maestro Moacir Santos) e gravação de suas músicas por intérpretes do
escol de Milton Nascimento, Djavam, Joyce e Gilberto Gil e dificilmente citam
suas parcerias com nomes do samba do mesmo patamar musical como Nelson
Sargento, Dona Ivone Lara, Aluízio Machado, João Nogueira, Wilson das Neves,
Martinho da Vila,Walter Alfaiate, Almir Guineto, Délcio Carvalho e Padeirinho
da Mangueira, passando a impressão de que seu único parceiro sambista é o
Wilson Moreira – nem citamos Zé Luis, Sereno, Cláudio Jorge, os mais constantes.
E raramente citam os grandes sambistas que te gravaram: Agepê, Elizeth Cardoso,
Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Elza Soares, Noite Ilustrada, Mestre Marçal,
Jovelina Pérola Negra entre outros. Quando citam alguém do samba, o que está
sendo raro, lembram dos mais midiáticos Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Alcione
e Dudu Nobre e mais recentemente Arlindo Cruz. A chamada MPB é mais
prestigiosa? Se o samba é a música mais popular do Brasil, porque a Música
Popular Brasileira é um coisa e o samba é outra?
NL - Ao lado do que eu disse antes sobre os produtores do “iê-iê-iê”,
acrescento que, uma outra vertente do pensamento sobre a música brasileira
elegeu o samba elitista “de concerto”
(que não é feito para dançar e, sim, para ouvir), como seu padrões de excelência. A partir daí, e com o esforço
de internacionalização da música popular brasileira (subserviente aos padrões
pop-rock) criou-se a música que se convencionou chamar de MPB (a época era de
siglas, como PIS, PASEP, FUNRURAL, MOBRAL etc). O samba não entrou aí: porque
era, efetivamente, música de preto, pobre e velho. E a música brasileira
precisava ser “moderna”. É uma questão ideológica, mesmo.
DM - O
bom humor é um traço da sua personalidade e isso perpassa toda a sua obra,
refletindo-se tanto na esfera musical, quanto na literária, mesmo quando aborda
assuntos delicados ou polêmicos como o preconceito racial e a colonização
cultural. A despeito disso há um segmento da mídia que o rotula como um velho
ranzinza, rabugento, retrógrado e reacionário (os 4 R’s). Há até quem o chame
de xiita do samba (o que eu sei que você não gosta). Você enxerga nessa postura
uma estratégia de se tentar esvaziar o conteúdo denunciatório de suas
afirmações?
NL - Eu, como ser pensante, é claro que tenho minhas contradições, como
todo mundo. Mas já fui chamado de tudo, até de “radical”, o que pra mim é um
elogio e não um insulto. Uma vez, no Salgueiro, me disseram que eu fazia sambas
bons porque vinha estudado, o que não corresponde a realidade, pois eu conheci
alguns sambistas analfabetos, mesmo, que faziam sambas magníficos. Quando se
quer diminuir, desqualificar, usa-se todas as armas. Guerra é guerra!
DM - Em
2012 cinco grandes nomes do cenário musical brasileiro completaram 70 anos.
Você foi um deles e sem dúvida, foi um ano especial, iniciado com a gravação de
um depoimento no MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som), em 25 de janeiro e fechou
com chave de ouro, recebendo o título de Doutor honoris-causa, outorgado pela UFRRJ, em 19 de outubro. Houve, junto
ao grande público por intermédio da imprensa, uma enorme badalação em torno do
aniversário do quarteto de compositores (Paulinho da Viola, Milton Nascimento,
Caetano e Gil). O teu também foi divulgado, mas à parte. Você enxerga um motivo
aparente para que não se celebrasse um quinteto?
NL - Eu não sou uma estrela, como eles são; muito menos, uma figura
midiática. Aí, eu lembro que, na década
passada, quando a redação de O Globo me incluiu entre os “100 brasileiros
geniais” (o que, sinceramente, foi um exagero), quem me escolheu não foi a
editora de Música e sim a de Comportamento. Deu pra entender?
DM - Sobre
a colonização cultural e o processo de assimilação/aculturação do brasileiro
sob os ditames da americanização (rebatizada de globalização e enfeitadinha com
a linguagem pop) você identifica no hip-hop a tradução dessa linguagem
direcionada pela Indústria Cultural à população negra brasileira, sobretudo a
das áreas periféricas. Podemos perceber esse seu discurso crítico em sambas
como Goiabada Cascão e Fidelidade Partidária (com Wilson
Moreira), Eu não falo Gringo e Baile no Elite (com João Nogueira), A Neta
de Madame Rocquefort (com Rogério Rossini) e Pala pra trás (com Magnu Sousà). Muitos consideram uma patrulha
ideológica do nacional-popular muito contraditória de sua parte. Num momento
você rejeita essa manifestação musical ‘made in USA’, noutro momento você canta
à moda dos rappers como no trecho final de Justiça
Gratuita e no samba contagiante
Chutando
o Balde. Poderia esclarecer esse ponto?
NL - Cantar feito “rapper” é brincadeirinha: “Deixa que digam, que pensem,
que falem...” E o que eu acho sobre essa
questão de colonização e assimilação na música é que a gente deve, sim, pegar
os signos da modernidade lá de fora e botar do nosso jeito, antropofagicamente,
sem imitar. Por isso, estou gostando muito do tipo de samba que está se fazendo
agora, com Pretinho da Serrinha, Seu Jorge, Leandro Sapucahy, essa rapaziada. É
assim que se faz; e foi fazendo isso que o samba avançou. E é bom que se diga,
também, que rap não é música e sim declamação. Dentro desse registro, de
improviso cantado, muito mais bonito, importante e difícil é o “coco de
embolada”. Que inclusive alimentou, muito, o repertório do partido-alto, essa
espécie ameaçada de extinção.
DM - Vem
música sua no próximo cd do Jongo da Serrinha. Está disponível no site do
Youtube um vídeo do Marcelo D2 numa roda de jongo na Serrinha. No vídeo estão
também seus parceiros de composição Moacyr Luz e Fred Camacho. Vendo esse
cantor do hip-hop/ rap/pop entoando pontos de jongo, lembrei de uns versos do
Aniceto do Império, cantando a morte
do jongo em ritmo de samba : Eu e o jongo
já me chamam caxambu/ eu tá virando petisco de urubu/ quem me entendia, morreu/
já não vive mais/ burubu de ofida/ vivem mi robando a paz. Em 1975 seu
parceiro Rubens Confete já alertava do risco dessa descaracterização nos
encontros que o Darcy promovia no “Vai se quiser” em Engenho de Dentro, onde a
apresentação dos jongueiros era precedida por um baile no qual “o toca-fita despejava músicas americanas
irritantes”. Enfim, Nei, isso tá virando ‘quitanda pra pagar e receber’?
NL - O Mestre Darcy lutou durante muito tempo para tira o jongo do âmbito
folclórico e colocá-lo efetivamente como um gênero de música popular, em pé de
igualdade com o samba, com o que hoje se chama de “forró” etc. O pessoal do
Jongo da Serrinha trabalha no sentido da continuidade da obra dele; e está
conseguindo dar uma certa visibilidade à sua arte. Aí, vem gente querendo
“pegar carona” no processo. Isso acontece com o samba, também. Todo mundo acha
que pode e sabe cantar samba, quando a realidade é bem diferente. Todo mundo
quer tirar uma “casquinha”; mas dar ao samba a sua real importância, não só
cultural mas mercadológica, não interessa.
DM - Esse
exemplo do D2 se aproximando do jongo e do samba, assim como outros rappers
(Emicida, Gabriel, o Pensador, Rappin Hood, Racionais MC) tem se intensificado,
a cada ano, assim como o flerte da turma do rock com o samba. O Cazuza era
censurado pelos colegas de Barão Vermelho por querer cantar Cartola (quando
saiu do grupo gravou O mundo é um moinho,
além de terminar uma música do Cartola que estava inacabada). Hoje o mesmo
Barão Vermelho contabiliza regravações de Bezerra da Silva, Fundo de Quintal e
Adoniram. Nomes como Chorão, Marcelo Camelo, Paula Toller, Nando Reis, Paulo
Miklos e até o João Gordo da banda punk Ratos de Porão, se renderam ao samba. O
Luis Schiavon (do RPM) fez um samba gravado pelo Fundo de Quintal. Arnaldo
Antunes compondo com Mauro Diniz e com o Paulinho da Viola. O que antes era
esporádico (uma das primeiras gravações de Raul Seixas foi 'Aos trancos e barrancos' ,um samba com direito
a pandeiro e cavaquinho, além da união de Wilson Moreira, a Blitz e você, em
Fidelidade Partidária) hoje em dia parece que virou regra. Parece que esse modismo
ficou mais evidente após o registro do samba como Patrimônio Cultural. Seria
uma forma de esses artistas legitimarem-se, criando um vínculo com a cultura
nacional? E os executivos dos conglomerados da Indústria Cultural de massa
parecem apoiar essa iniciativa, né?
NL - Os roqueiros gostam do Bezerra da Silva pelo aspecto da
“transgressão”. Que, no meu julgamento, era mais marketing que outra coisa. A mal sucedida
participação do Evandro Mesquita foi ideia da gravadora. Engraçado é que nunca
chamam um sambista pra cantar nos discos do universo pop-rock. Eu, pelo menos nunca vi. Então, acho
que é tudo sempre uma grande sugação de Energia, coisa que o samba tem
demais.
DM - Existem
compositores que só fazem samba-enredo, os que só fazem samba-canção, ou
samba-de-breque, ou samba de partido-alto. Você joga nas onze. Essa
versatilidade você levou para a Literatura: poesia, conto, crônica, ensaio,
romance, literatura infantil, literatura paradidática, peças teatrais,
enciclopédias e dicionários. E em todos os campos a qualidade e a competência
se faz valer. Você recebeu o prestigiadíssimo Jabuti na categoria paradidático
e foi indicado ao concorrido Portugal Telecom com um romance, figurando ao lado
dos melhores escritores lusófonos (só essa indicação já teve um saborzinho de
prêmio). Você guarda um bilhete do Antônio Houaiss por causa do seu Novo Dicionário Banto do Brasil como um
verdadeiro troféu. O historiador angolano Simão Souindoula enaltece o fato de a
sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora
Africana ser o único inventário, em língua portuguesa, sobre o tema.
Escrever o prefacio da mais nova edição dos clássicos Vozes d’África e Navio Negreiro, de Castro Alves surtiu como um
prêmio?
NL - É sempre bom ser reconhecido, não é. Mas o grande prêmio foi o convite
para escrever o prefácio da nova edição de “Francisco Félix de Souza, mercador
de escravos”, do acadêmico Alberto da Costa e Silva, o maior africanista
brasileiro. O livro está saindo, na esteira de “Imagens da África” (Penguin
& Companhia das letras, 2012) que o mestre me enviou com uma dedicatória
muito afetuosa. Essas coisas é que têm
me dado alegria, ultimamente.
DM - Alguns
te chamam de bantuísta, penso que seria um reducionismo. A sua visão da África
é muito plural para isso, contudo é inegável os laços que você tem com Angola.
Como foi para você debater com os dois maiores escritores angolanos vivos,
primeiro com o Pepetela e depois com o Agualusa?
NL - “Debater” é discutir, polemizar; e eu apenas conversei, bati papo.
Muito mais com o Agualusa, que é tranqüilo e simpático; e até aceitou escrever o prefácio de meu novo
romance, cujos originais estou entregando à Língua Geral para avaliação na próxima semana.
DM -
Na Semana da Consciência Negra circulou nas redes sociais, num efeito viral, um
vídeo do ator Morgan Freeman onde, de forma incisiva, chama de ridículo esse
papo de mês de Consciência Negra. O entrevistador argumenta de que seria uma
forma de acabar com o preconceito e o ator é categórico, afirma que se elimina
o preconceito não falando dele, não chamando um negro de negro ou um branco de
branco. Aos que enxergam na movimentação dos coletivos negros em busca de uma
sociedade mais justa, uma atitude separacionista o depoimento de Freeman caiu
como uma luva, pelo fato de ser negro, ser bastante conhecido e de afamada
integridade. Nei, levando-se em conta a diferença da experiência negra no
Brasil e nos Estados Unidos, até mesmo a cerca da escravidão, onde lá durou bem
menos tempo e ocupou menos da metade do território nacional, é válido um
comparativo de lá com a realidade brasileira?
NL - Estranho, isso! Nos EUA há “mês da Historia Negra”, feriado no “Dia
de Martin Luther King” . Será que o Morgan Freeman disse isso mesmo? Comparar as duas experiências é sempre muito
elucidativo. Aí, vamos ver que a situação no Brasil é muito mais desfavorável
para os afrodescendentes. A segregação favoreceu a criação de universidades,
igrejas etc exclusivas dos negros, e isso foi fator de progresso. No Brasil,
não houve segregação explicita, mas até mesmo o paternalismo fez estragos muito
grandes. Mesmo porque o país foi uma monarquia até 1889; e a Republica planejou
e executou políticas de arianização, travestidas de eugenismo. Muito por isso é
que, apesar da independência política, continuamos a ser culturalmente colonizados.
O mencionado Agualusa, num romance chamado “O ano em que Zumbi tomou o Rio”
(Gryphus, 2008) sugere, por um de seus
personagens, que a situação do negro
brasileiro hoje é pior até do que em
Angola.
DM - O
número de adeptos das religiões afro-brasileiras tem decrescido. O período
censitário de 1980 a 2010 registrou segundo o IBGE, 0,57% e 0, 30% da
população, respectivamente, ao passo que os evangélicos, notadamente os
neopentecostais, foi o grupo que mais cresceu no período, justamente a turma
que mais hostiliza os adeptos das religiões de matriz africanas. Desses novos
evangélicos 60% são afrodescendentes (8,5% negros e 48,9% pardos). Fenômeno
acentuado nas camadas mais pobres dos centros urbanos, com alto índice de
vulnerabilidade social e considerável taxa de analfabetismo. O sociólogo José
R. Prandi aponta que o perfil da maioria dos candomblecistas tem se assemelhado
ao dos umbandistas do século passado, classe média branca. O candomblé não é
mais a religião de negros pobres. A religiosidade é um aspecto fundamental para
a identidade do ser e para o sentido de pertencimento grupal. É em grupo que os
homens fazem cultura. A que se deve esse panorama? O negro brasileiro se
conhece e se aceita?
NL - Para mim, a questão é mais econômica do religiosa ou filosófica. É
muito mais fácil e barato ser “neopentecostal”. As religiões afrobrasileiras, notadamente o culto aos
Orixás envolvem muitos gastos, tanto na iniciação quanto na prática cotidiana. E as neopentecostais
oferecem possibilidades de prosperidade financeira e econômica. Outro problema
é que as religiões africanas têm fundamentos doutrinários complexos, de difícil
compreensão. Enquanto que os pastores neopentecostais são muito bem treinados
em suas técnicas de convencimento. Um dado interessante que me chegou dia
desses é que muitos jovens estão indo estudar Teologia na expectativa de
fazerem carreira profissional como pastores.O grande exemplo é a Igreja
Universal cujo líder é o homem mais rico
no setor, seguido por três ex-membros de
sua igreja que formaram seitas dissidentes (Folha de São Paulo, 15.01.13:
“Edir Macedo lidera lista da ‘Forbes’ dos pastores mais ricos do Brasil”).
DM - O
número de deputados da chamada bancada evangélica em Brasília tem crescido
exponencialmente e supomos que nas Assembleias Estaduais e Câmara de
Vereadores, a proporção não tem sido diferente. É até um reflexo do crescimento
demográfico desse segmento cristão, obedientes a máxima de que ‘irmão vota em
irmão’, propalada a partir dos anos 1980. Em 1982 a Câmara Federal contava 2
deputados, em 1986 saltou para 18 e em 2010, os vertiginosos 73 (no período
compreendido entre 1910 e 1982 somou-se apenas 5 deputados). Esses grupos
políticos são marcados por um excesso de corporativismo, fechando um grupo em
prol de seus interesses, daquilo que julgam ser o ideal de uma nação, nos
parâmetros de uma doutrina religiosa e de dogmas e artigos de fé. Você que foi
chefe de gabinete do senador Abdias do Nascimento enxerga nisso um atentado ao
estado democrático de direito?
NL - Eu vejo isso tudo como uma estratégia para tomada do poder. Nesse
passo, o Brasil estará caminhando para
se tornar uma “república neopentecostal”, da mesma forma que existem republicas
islâmicas.
DM - Os
escritores Adeildo Vila Nova e Edjane Alves dos Santos, no livro ‘Mulheres Negras’ destacam a condição
adversa da mulher negra brasileira, sendo alvo de discriminação tripla. Uma por
ser mulher, a outra por ser negra e como a maioria esmagadora de negras é
pobre, estaria aí uma 3ª razão de discriminação. No seu entendimento, qual o
efeito do signo ‘Globeleza’ como produto cultural para as mulheres jovens
(negras ou não) e para os rapazes (negros ou não)?
NL - O problema maior não é a “Globeleza”, que é uma fantasia
carnavalesca. O mais sério é o fato de todas as apresentadoras da TV serem
louras, por exemplo.
DM - Você
é um ardoroso defensor das Políticas de Ação Afirmativa, notadamente o Sistema
de Cotas no ensino superior. Você é bacharel em Direito, se formando em 1966 na
tradicionalíssima Faculdade Nacional de Direito (atual UFRJ). Se você, como
negro, conseguiu furar o bloqueio e ingressar numa faculdade pública por que
apoia as cotas ao invés de encorajar os afrodescendentes a também furar o
bloqueio?
NL - Na minha época, o ensino
publico era mil vezes melhor que o de hoje. E isso me permitiu chegar lá.
Hoje, é muito mais difícil alguém com a
minha história de vida ingressar numa
universidade. Por isso, já que recuperar o bom ensino publico da minha época é
coisa pra muitos anos, é que eu sou a favor das políticas de ação afirmativa. Mas não sou um “ardoroso defensor”, mesmo
porque a questão é eminentemente técnica, e ganhou muita complexidade, com a
inclusão de vários fatores. Não é um assunto sobre o qual eu tenha conhecimento
profundo. Mas apoio o principio fundamental: inclusão, como reparação.
DM -
Você é hoje considerado como uma das vozes que se erguem contra a
estigmatização depreciativa do negro, questionando o papel social que a elite
tem imposto aos afrodescendentes como indolentes, libertinos e serviçais, numa
espécie de predisposição biológica inata. Talvez cause estranhamento o uso
recorrente em sua obra lítero-musical do termo ‘mulata’, expressão rechaçada
pelo Movimento Negro por causa da etimologia controversa da palavra que
estabeleceria uma analogia pejorativa com a mula, animal de carga. Gostaríamos
de ouvir seu parecer como lexicógrafo e etimologista.
NL - Você me classifica muito; e eu
não gosto disso. Mas...vamos lá! Existem
formas de racismo muito mais serias e prejudiciais que aquele embutido no
léxico ou nas falas. E é com essas que devemos nos preocupar.
DM -
Você denuncia um processo lento e contínuo de desafricanização do samba, o que
atinge também as agremiações carnavalescas, tudo gerenciado pela Indústria do
Entretenimento atendendo a interesses de fora. Esse processo de diluição
encontrou uma sociedade receptiva. Sequela social do ideal de embraquecimento
que norteou a intelectualidade brasileira por muitas décadas, o que na ótica de
sua crítica musical, produz uma forma de samba ilegítima, espúria. Essa sua
concepção é duramente rebatida por Anna Paula de Oliveira Matos Silva em Pindorama, onde o samba é mais puro,
tese de Doutorado que ela defendeu em 2008, na PUC- Rio, onde, dedica um capítulo
para analisar o que ela considera contradição em sua crítica musical e um outro
onde examina as contradições no discurso
de Tinhorão. Ela aponta que o samba para você é a principal referência cultural
brasileira e paradoxalmente, para ser autêntico, na visão neilopiana, o samba
tem que ter a prevalência da cultura africana. Isso é uma incongruência?
NL - Eu nunca fui um purista do
samba: esse é mais um equívoco a meu respeito. Desde pelo menos a década de 80
que eu venho buscando alinhar o samba que faço a outras formas,
afrobrasileiras, afrocubanas etc. Nem
gosto da classificação “samba de raiz”, que engessa, limita, congela o samba no
tempo. Como já disse, gosto muito hoje do samba moderno do Farofa Carioca, do Seu Jorge, do Trio Preto+1. Então, eu não sou um purista nem um incongruente.
DM - Você destaca
que esse processo de desafricanização atinge também as agremiações
carnavalescas. O que se fortaleceu depois que o desfile das Escolas virou busine$$, todavia, as escolas de samba,
de início, compostas majoritariamente por negros, não se identificavam tanto
com a questão da africanidade. Não traziam temas ligados à ao Continente Mãe.
Esse panorama não mudou com o desfile memorável do seu Salgueiro a partir dos
anos de 1960 (ruptura considerada como uma verdadeira revolução)? Com Pamplona
e pelo Arlindo, dois cenógrafos da Escola de Belas-Artes, brancos, da classe
media carioca?
NL - Samba é uma coisa e escola de
samba é outra – eu sempre disse. O samba começou a se desafricanizar já na
década de 20, quando entrou no Rádio. Mas a escola de samba, por suas origens e
por seu propósito de ser a voz de suas comunidades, foi, sim, uma fenomenal
expressão de cultura negra (de base africana, portanto) até a sua conformação como espetáculo. E
isso, curiosamente, começou com os enredos afro do Pamplona. É muito difícil
conjugar ideologia e espetáculo, principalmente no contexto de capitalismo
selvagem em que vivemos. O que move e transforma tudo é grana, grana, grana!
DM - Você
não acha mais graça nos desfiles atuais, diz que samba bom era antigamente. Seu
primeiro desfile foi em 1963, no Salgueiro, o enredo era Chica da Silva. Em
fevereiro de 66, três anos depois, Mestre Fuleiro tornava público o seu
desalento pelo rumo que o carnaval tomava, descaracterizando-se (O grande debate, revista Manchete).
Outro imperiano Mestre Aniceto afirmou a J. Muniz Jr. que o samba legítimo era
na época das escolas Mama na Burra em Turiaçu e Rainha das Pretas, do Largo do
Neco, em Madureira. Isso antes da Império Serrano surgir. Já nos anos 70
Candeia, Paulinho da Viola e outros bambas apresentaram um manifesto à Portela
propondo um retorno às origens, ao autêntico samba. É interessante notar em
alguns fóruns de bate-papo na internet sobre carnaval (frequentado na maioria por
jovens na faixa dos 30) execram os sambas de agora, sentindo saudades dos da
década de 80. A vida é dinâmica. O homem evolui e junto dele suas instituições
(escola de samba) e suas criações (samba-enredo). Em 2012, Daniel J. Levintin,
após anos de estudos, lançou o livro A
música no seu cérebro, onde afirma que nos anos que precedem a idade adulta
o cérebro é mais sensível à influência musical .
“Os hormônios da puberdade fazem tudo o
que nós experienciamos parecer muito importante, inclusive a música. É a fase
em que chegamos a um ponto de desenvolvimento cognitivo em que passamos a
desenvolver nossos próprios gostos”, o jornalista David Hadju, resume a
tese do livro num artigo para o New
York Times. Esse contato seria uma espécie de experiência fundadora. Um
marco, um divisor de águas onde elegemos nossas opções pessoais. Será que isso explica o saudosismo e a
nostalgia que faz parecer que ‘na nossa época era melhor’? O samba-enredo antes
era superior ou apenas diferente? Será que daqui a 20 anos os compositores de
hoje, como o Cláudio Russo da Beija-Flor e André Diniz da Vila Isabel não
dirão, pô, samba bom era no meu tempo, samba de verdade era em 2010?
NL - Antigamente, o princípio que regia as escolas de samba era o
“espírito de seita”, ou seja, a sensação de você estar participando de alguma
coisa que era privilegio de iniciados, não era pra qualquer um. Hoje, você o
cara mora no Japão, paga a pela
internet, recebe a gravação do
samba-enredo num e-mail, vem, pega a fantasia evai desfilar. Entendeu a
diferença? O bom, no meu tempo, mais do que o samba, era o mistério.
DM - Para
finalizar, você alcançou tudo que um compositor de samba pode almejar: viu
samba-enredo de sua autoria ser cantado na passarela. Compôs com os mais
geniais compositores da sua geração (alguns da velha e da nova geração). Viu
suas canções gravadas pelos maiores nomes de nossa música, além dos já citados,
vale lembrar Chico Buarque, Emílio Santhiago, Orquestra Tabajara, Leci Brandão,
Jorge Vercilo, Fundo de Quintal, Seu Jorge, Elymar Santos, Vó Maria, Jorge
Aragão, Sérgio Mendes, Mussum. Viu seus sambas nas paradas de sucesso. Hits de
telenovela. Coqueluche nas rodas de samba. Sambas de sua autoria traduzidos
para outras línguas, como as versões em espanhol na Venezuela. Sua obra foi
tese de mestrado, doutorado e seminários. Você foi biografado. Recebeu os mais
importantes prêmios da indústria fonográfica e títulos honoríficos por parte do
Governo e do mundo acadêmico Ganhou o reconhecimento moral e pecuniário (talvez
não o devido em ambos os casos) por sua produção musical. Você espera algo mais
da música? O Nei-escritor agora é o santo-de-frente e o Nei-sambista virou
adjuntó?
NL - O universo do samba
ficou muito poluído por interesses financeiros. Ficou vulgar. Prefiro, então, ficar
em casa, estudando, escrevendo, criando... Aos 70 anos de idade não dá mais pra
“jogar conversa fora”. Como dizia aquele lindo samba do Jurandir da Mangueira,
“não me dá mais prazer /contemplar o luar/ pelos buracos do teto /do meu
barracão”. Prazer, mesmo, é ver que o
teto não tem mais buraco e o barracao agora é uma boa casa, simples, mas
confortável. Se é tudo uma questão econômica, então vamos jogar o jogo
Nei Lopes recebe a Medalha da Ordem do Mérito Cultural, das mãos do então Ministro da Cultura Gilberto Gil, em solenidade comandada pelo Presidente Lula |
DM
- Nei
agradecemos sua atenção para conosco. Não é sempre que podemos entrevistar um
baluarte da cultura nacional. Sabemos o quanto o teu tempo é precioso.
NL - Bispo
Ricardo, meu amigo,
vem muito a calhar tua solicitação para essa entrevista, unanimamente, aprovada
aqui pelo "NEI, Núcleo de Estudos Interdisciplinares" (organização
privada e individual, com finalidades altamente lucrativas! rs,rs,rs).Mesmo
porque tenho que reunir e entregar um material autobiográfico para um
livro sobre a Escola Técnica Visconde de Mauá, onde, depois do Irajá, tudo
começou. Abração, pra você e pro Arcebispo, seu pai.
Parabéns Ricardo!
ResponderExcluirUma oportunidade ímpar para conhecer a mente do poeta e sua perspectiva sobra assuntos que volta e meia são alvos de nossos colóquios. Quem gosta de samba vai gostar, quem "gosta" de pensar também gostará, agora que não é "chegado" em samba nem pensamento, nada entenderá. (rsrsrs)
Grande abraço
Elson
Valeu Poeta
ExcluirERRATA:
ResponderExcluirOnde lê-se: "sobra";
entenda-se: sobre.
Foi mal. rsrsr