O ator Dan Stulbach, Tom Hanks brasileiro
O ator Dan Stulbach, Tom Hanks brasileiro |
No
partido-alto, “Ganzá do Seu Leitão”,
coautoria de Cleber Augusto, Nei Lopes sintetiza na personagem principal, tanto
a memória de seu pai, Luiz Braz, como a de sua mãe, Dona Eurídice Leopoldina,
além de Dayr, conhecido por Noco, um de seus irmãos mais velhos.
Ouça o samba na voz de Roberto Ribeiro aqui: http://grooveshark.com/#!/search/song?q=Roberto+Ribeiro+O+Ganz%C3%A1+do+Seu+Leit%C3%A3o
Ouça o samba na voz de Roberto Ribeiro aqui: http://grooveshark.com/#!/search/song?q=Roberto+Ribeiro+O+Ganz%C3%A1+do+Seu+Leit%C3%A3o
Os elementos afetivos recolhidos em seu núcleo
familiar, compostos de narrativas e vivências dos “mais velhos” embutidas nas
recordações de infância são os ingredientes de Nei Lopes para confecção de quadros
musicais do passado. Daí a historicidade que permeia sua produção musical
(Coisa da Antiga, Epopeia de Zumbi, Tempo de Dom Dom, Sapopemba e Maxambomba, Goiabada
Cascão, Compadre Bento e outros).
O recurso
de identificar um agente social do passado na figura de um antepassado, depositário de vivências e visões de mundo legadas à
posterioridade, atua como
fio condutor para que o eu lírico de Nei Lopes crie um vínculo indissolúvel
(consaguinidade, descendência) entre presente e passado, sendo o “hoje”,
herança e consequência direta do “ontem”, o que introduz a pessoa do narrador ao discurso. E que
opera para uma noção de integração e
sentido de pertencimento, legitimando de forma incontestável sua denúncia sobre
a opressão e exclusão (muitas vezes sutil)
dos negros na sociedade brasileira.
A figura
do “mais velho” é uma simbologia e exerce a função de instrumento ideológico
para a construção e afirmação identitária, encadeando fatos históricos - dando
vazão à afetividade das recordações, em forma de canção num “rejunte” para a
consolidação da identidade. Conviveu, ele, em sua infância no Irajá, subúrbio
do Rio, com gente que havia vivido a escravidão e que contavam causos do tempo
do cativeiro. Acervos vivos de uma história valiosíssima. Nessa viagem ao passado
longínquo em busca de uma ancestralidade africana, Nei resgatará nessas pessoas
a memória de sua ascendência negra familiar, a qual não pode conhecer
pessoalmente. Raízes profundas de sua árvore genealógica. Negras raízes de um
baobá.
Sobre esse aspecto, Cosme Elias,
autor de uma tese de Doutorado sobre a obra de Nei Lopes, pontua: “É uma referência mítica, arquitetada no
sentido de afirmar uma identidade, construir um ambiente imaginário em que a
figura do mais velho se apresenta como sustentáculo desse ‘ser’ carioca e
principalmente negro”
O Seu
Leitão do samba é uma espécie de Forrest Gump, “O contador de histórias”, personagem vivido por Tom Hanks no cinema
em 1994, o que lhe rendeu um Oscar e um Leão de Ouro como melhor ator. A
produção também ganhou essas estatuetas como Melhor Filme e Robert Zermerkis,
Melhor Diretor, além de outras tantas premiações. “O contador de histórias” é uma fábula moderna, baseada no romance
homônimo de Winston Groom. Forrest se torna protagonista e testemunha ocular de
eventos marcantes da história norte-americana do século XX: combateu na Guerra
do Vietnã, participou, ao lado de Broadway Joe, da campanha vitoriosa do
Alabama, campeão do futebol americano em 1961; integrou a seleção dos EUA de
tênis de mesa; conheceu John Lennon e o inspirou a compor “Imagine”; foi recebido na Casa Branca por vários presidentes, como
Lyndon Johnson, John Kennedy e Robert Nixon, com este último vivenciaria o
famoso “caso Watergate”; conheceu Elvis Presley e as tentativas estabanadas de
Forrest em dançar, dificultado pelos aparelhos que usava nas pernas, inspiraram
os movimentos tresloucados que depois consagrariam o Rei do Rock.
Se a saga
de Forrest abrange quase 4 décadas da história estadunidense, a do Seu Leitão,
cobre 6 décadas da nossa história, pois a narrativa inicia no ano da Abolição
da escravatura, quando o protagonista nasce e se encerra em 1950, com o “Maracanaço”. Esse samba é também uma fábula
moderna. Seu Leitão pegou a gripe
espanhola, andou em bonde de burro, participou das lendárias rodas de samba e
pernada na Praça Onze; folião infatigável foi figura proeminente nos ranchos
carnavalescos Ameno Resedá e o Kananga do Japão, que antecederam às escolas de
samba; e assim como Forrest foi ao front, combateu nas duas Grandes Guerras, e
brilhou também nos desportos, foi zagueiro da Seleção Brasileira em 1938 na
Copa da França e na copa seguinte,
realizada no Brasil presenciou o fiasco do time nacional.
Em
depoimento ao jornalista Fernando Faro, Nei Lopes revelou que seu pai nasceu em
1888 e era íntimo de Santos Dumont (íntimo não por amizade e sim por
contemporaneidade), o que Nei transporta para sua personagem nos versos “Seu Leitão
nasceu no ano em que acabou a escravidão/Conheceu Doutor Alberto, o inventor do
avião”, na mesma estrofe ele afirma que Seu Leitão “viu o enterro do
Barão” e no mesmo depoimento ele conta a Fernando Faro que sua mãe lhe falava
sobre o enterro do Barão do Rio Branco.
Nei
manuseia as lembranças de sua infância como um metódico historiador a garimpar fontes
documentais em um arquivo. Suas memórias emocionais são de fato a matéria-prima
para a base textual de muitas de suas criações musicais.
Ainda o
samba em análise, Nei Lopes menciona a Oswaldo Faustino, seu biógrafo, que seu
irmão mais velho, Dayr, esteve na 2ª Guerra Mundial, assim como o protagonista
do samba, o presepeiro Leitão: “na Segunda
Grande Guerra deu três tiros de canhão”.
Apesar da semelhança entre as epopeias de Seu Leitão
e de Forrest Gump, cabe a ênfase da originalidade e anterioridade do samba do
Nei, gravado por Roberto Ribeiro em 1983. O romance de
Winston Groom só seria publicado em
1986. Nei Lopes reeditou esse samba dividindo os versos com o MPB-4, no álbum De Letra & Música, em 2001.
Ouça a versão com Nei Lopes e MPB-4, aqui:http://www.sambaderaiz.net/de-letra-e-musica-nei-lopes/
Ouça a versão com Nei Lopes e MPB-4, aqui:http://www.sambaderaiz.net/de-letra-e-musica-nei-lopes/
Extraído do
livro “O ABC de Nei Lopes, o
samba na aula de História”, a ser publicado, do mesmo autor desse artigo.
Autor: Ricardo Bispo
REFERÊNCIAS:
ELIAS, Cosme, O samba do Irajá e de outros subúrbios.
Rio de Janeiro: Pallas, 2005, página 124
FAUSTINO, Oswaldo, Nei Lopes, Retratos do Brasil Negro.
São Paulo: Selo Negro, 2009, páginas
98 a 102.
FILHO,
Rubens Ewald , O Oscar e eu, São Paulo: Cia Editora Nacional,
2003.
LOPES, Nei, A música brasileira por seus autores e
intérpretes, Vol. 8. CD nº 8 – SESC, São Paulo (Tv Cultura de Programa
Ensaio de 2003 - Entrevista realizada 11/11/2003 por Fernando Faro).
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