Conto vencedor da etapa municipal do Mapa Cultural Paulista 2013/14, por São Vicente
Norton despertou num sobressalto. Que
explosões seriam aquelas? Seria um pesadelo? Chovia ainda? Sim. Tateou o
criado-mudo à cata do celular. A luz de LED do visor do telefone iluminou
momentaneamente o quarto. Duas da manhã e ainda chovia. Caracoles! E chovia
forte – o ritmo das bátegas da chuvarada que percutiam sobre o toldo da
lan-house lá embaixo lhe confidenciava. Teria que voltar a dormir. Levantaria
às sete. Levantar de manhã em pleno domingo é dose pra leão doido. Ainda mais
um domingo chuvoso. Domingo friento.
Era chuva de vento. A porta galvanizada
de uma estamparia, noutro quarteirão, arfava ruidosamente ao ser distendida
pela ventania incessante. Boom! A mesma explosão do sonho. Não! Não era sonho.
Não era explosão. Norton se lembrou, e lamentou, a porta do banheiro do andar debaixo
que esquecera destravada e agora se debatia aos influxos da corrente de ar.
Bah! Nada nesse universo lhe retiraria do quentinho aconchegante daquele
edredom. A sinfonia percussiva da chuva prosseguia lá fora. Aprazível e
hipnotizante. Relaxante, tamborilando sobre o toldo de policarbonato da
lan-house. Como é gostoso dormir com o barulho da chuva. Faltava apenas ela.
Ali naquela cama! Agarradinhos em conchinha, pés entrelaçados, os caracóis de
seus sedosos cabelos ora lhe afagando, ora lhe fazendo cócegas, ora lhe
sufocando. Sob a harmonia melódica da chuva... Boom! A bendita da porta!!!
Impossível pegar no sono novamente com
aquele bate-bate intermitente. Ok, você venceu, batatas fritas! Norton
ergueu-se, contrafeito, cambaleante, envolto na colcha, caçando com os pés a
sandália embaixo da cama. Ah, vou só de meia mesmo, decidiu. Raios riscavam o
céu e seus clarões se acendiam na parede do quarto, oposta à janela, como se
fossem flashes fotográficos. Largou a colcha sobre o leito desgrenhado e vestiu
o velho casaco que pendia da cabeceira da cama. Desceu as
escadas zonzo como um morto-vivo, trancou a porta deselegante e voltou pro
quarto. Pôs-se a espiar, pelos vãos da persiana, a rua desértica lá fora.
Desembaçou o vidro opaco da janela com
uma das mangas do casaco. Constatou, de encontro à luz do poste, a intensidade
da chuva que, compacta, caía em diagonal.
Rasgando a solidão daquela rua a
carcaça de um guarda-chuva passou tropicando aos safanões da ventania. As abas
esvoaçantes do tecido preto que se desprenderam das varetas tremulavam no ar à
imagem de um batman arrastado pela ira de um tufão. Herói impotente.
Guarda-chuvas destruídos em meio a um temporal são como heróis impotentes.
Norton semicerrou os olhos e percebeu,
lá longe, na orla da praia, o vulto das palmeiras pescoçudas envergadas pelo
vendaval. Imaginou a bandeira gigante do Brasil com seus mais de cem quilos
estufando, como um lenço de abano, no mastro imponente no pico do Morro dos
Barbosas. De volta a sua rua, o facho luminoso dos postes incidia sobre o
asfalto molhado e taciturno e estendia uma faixa prateada, como se alguém desdobrasse
no chão uma trilha de papel laminado picotado.
Entrecortando o zunido do vento o
traquetralaque de uma latinha de cerveja vazia ou de refrí que vinha em cambalhotas,
também arrastada pelo vento, se intensificou. Traquetralaque, traquetralaque.
Vinha de longe. Do balcão de uma bodega noturna talvez. Traquetralaque, ou
talvez de algum inferninho carregado de fumaças de cigarro, de berros orgíacos
de despudoradas mulheres. Berros abafados pelo silêncio solitário de um poeta
noctívago. Ou talvez de uma festa chata, pois festas em noite de temporal são
chatíssimas. Traquetralaque.
Norton deitou-se na cama. Revirou-se na
cama. Olhou o porta-retratos sobre o criado-mudo.
Olhos ermos e tristes como as
luzes solitárias da Ponte Pênsil que iluminava a Baía de São Vicente na
escuridão liquefeita daquela madrugada. No porta-retratos ela. Sua Vênus de
Milo. Sua Vênus Williams. Ali, na cama, só faltava ela.
Parabéns amigo!!! Cada vez mais versátil e inteligente.
ResponderExcluirQue venha a próxima etapa!!!
Obrigado Elson. E no próximo Mapa Cultural quero ver suas obras brilhando também
ExcluirFelicito o nobre poeta pela dedicação ao Aparato Cultural.
ResponderExcluirValeu poeta e parceiro Mancuso
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