Imagine-se chegando de viagem numa grande
cidade a noite. Após deixar o avião, toma um táxi e ruma para um hotel. Um
luxuoso hotel. Chegando ao referido estabelecimento você fica sabendo que há
leitos disponíveis, porém não permitirão a sua entrada. Razão: a cor de sua pele.
Foi
o que ocorreu com duas mulheres negras em 1951, barradas numa noite fria de
junho por funcionários de um hotel paulistano. Só que a coisa fedeu, as vítimas
eram duas cidadãs estadunidenses:
a soprano Marian Anderson, famosa cantora e militante pelos direitos dos negros
nos Estados Unidos e a renomada bailarina, coreógrafa e etnógrafa Katherine Dunham, considerada a “mãe” da dança moderna,
mais tarde, mentora de Mercedes Batista, a pioneira da dança afro no Brasil.
Chamaram a autoridade policial. Nada se pôde fazer. Não havia lei que punisse
discriminação racial no país. Why? Como assim? Oh my God! O país com maior população negra fora da África não tinha
uma legislação sobre agressões raciais?
E o assunto deu pano pra manga. O estardalhaço das artistas afro-americanas, repercutiu
lá fora, causou um mal estar
diplomático e no mês seguinte, a toque de caixa o deputado mineiro Afonso
Arinos, da UDN (União Democrática Nacional), apresentou, mais por motivações
políticas do que questões humanitárias, um
projeto de lei que incluía ofensas de ordem racial entre as contravenções
penais sendo promulgada
em 03 de julho de 1951 por Getúlio Vargas (o mesmo a quem Arinos pediria a renúncia
num duro pronunciamento, duas semanas antes do fatídico suicídio no Catete).
A primeira lei de combate ao
racismo no Brasil – aprovada mais de meio século após a abolição, acabou
levando o nome de um político conservador, pouco alinhado com o clamor dos
movimentos sociais. Embora já imortalizado por causa da tal lei, o também
escritor Afonso Arinos, sete anos depois, em 1958, vestiria a farda de imortal da ABL.
Porque nada
foi feito antes sobre a questão do racismo recorrente no país. Por que foi
preciso que negros norte-americanos, já calejados com essas situações segregativas
e excludentes, sofressem numa noite, o que brasileiros sofriam no dia-a-dia por
séculos.
A resposta a essas perguntas é a mesma. Faltava ao negro brasileiro um ingrediente: CONSCIENTIZAÇÃO.
É
claro que muitos negros bradavam contra opressão racial cotidiana no Brasil. E
isso, bem antes da Lei Áurea. As autoridades tratavam com mais discriminação
quem as procurasse. A mídia não dava voz a essa camada da população e o discurso
espúrio de ‘é apenas impressão de sua parte, no Brasil não há racismo’ era a
amordaça oferecida. A Lei Afonso Arinos só foi sancionada por causa da
visibilidade internacional do ocorrido, mais como um amparo legal contra os ‘esporádicos’
casos de agressão racial, tratados sempre como casos isolados.
Chamamos a atenção para a postura de Duhan e Anderson, encarando como inadmissível aquela
ocorrência. Pelo fato de não lerem em português, acaso o táxi passasse pelas
ruas do Bixiga, região central de São Paulo, não perceberiam os cartazes em
muito sobrados com dizeres: ALUGA-SE QUARTOS, MENOS PARA PRETOS, ou VAGAS PARA
EMPREGO – PESSOAS BEM AFEIÇOADAS, (sabemos do teor racista dos critérios dessa boa feição) placas dessa natureza podiam ser vistas até o
início dos anos de 1980.
Foi
erguida toda uma estrutura para que o negro não tivesse CONSCIÊNCIA de sua
condição adversa. E de seu valor, de seu poder, daí as campanhas contínuas com
respaldo do Governo de depreciação de tudo aquilo que caracterize o negro e
suas origens, demonizando e inferiorizando todos os aspectos culturais
identitários, desde os Códigos de Conduta do Brasil Império, até os meados do
século XX. Sim, existe a pertinência de se ter uma data para celebrar a CONSCIÊNCIA
negra no Brasil.
Nessa
semana, como em anos anteriores, espocaram via internet nas redes antissociais,
os mesmos comentários questionando do porquê de haver dia e a Semana e o Mês da
CONSCIÊNCIA negra.
‘Ah,
seria melhor Dia da Consciência Humana’
‘Se
fosse Dia da Consciência Branca seria racismo’
‘Consciência
Negra é todos os dias’
Essa
última repetida por alguns setores do Movimento Negro (muitos ainda se enganam
e encaram as movimentações coletivas como grupos homogêneos). Nessas frases
acima se verifica o temor de uma segregação (o mesmo temor dos anti-cotistas e
de setores conservadores da sociedade, nos idos de 1950, se rebelando contra a
Lei Afonso Arinos e seus desdobramentos).
Nos dias correntes há uma ala
conservadora que levanta o mesmo argumento a cerca da Lei que instituiu a
obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura da África e afro-brasileira
em todas escolas, como a reivindicação estapafúrdia de se querer o ensino da
História da Itália, da Alemanha, do Líbano e do Japão, pois imigrantes desses
países deram seu contributo no mosaico cultural brasileiro. Reações contrárias
em jornais influentes e em pronunciamentos no Congresso acompanham toda e
qualquer, e mínima conquista da população negra. Desde a Lei do Ventre Livre
até os recentes Editais para Produção Cultural do Ministério da Cultura,
passando por leis como a descriminalização do candomblé, de autoria do deputado
Jorge Amado, pelo Partido Comunista ou a Lei Caó, que retirava a injúria racial
do patamar de simples contravenção e a elevava a crime inafiançável e
imprescritível e as Políticas de Ações Afirmativas.
O que mais impressiona é a permanência do discurso que se
repete ‘os negros querem regalias’, ‘há assuntos mais sérios para debater’, ‘os
negros adoram o papel de vítimas’, ‘isso irá dividir o país’, e a melhor: ‘mas,
isso fere a Constituição’, que pregava que todos os brasileiros eram iguais,
argumento esquecido quando se legislava para restringir os direitos dos mesmos
negros.
Esses
comentários engraçadinhos sobre o feriado da Consciência Negra (brasileiro é o povo que mais
adora feriado, e se puder enforcar um dia a mais, prolongando o fim de
semana, melhor ainda, curiosamente, reclama por mais um feriado - o único que gera reclamação) revelam um
desconhecimento das razões de se arrogar no Brasil uma CONSCIENTIZAÇÃO dos
negros, induzidos por muito tempo a alienação e negação, muitas vezes em níveis
inconscientes e subliminares, dos elementos de sua identidade.
Ignoram também
que num país multicultural, formado por diferentes grupos étnicos, cada qual
tem suas especificidades, cada qual tem a sua demanda e cada qual tem o seu
percurso. E é conhecendo o percurso histórico da condição do negro e
descendente no tecido social brasileira é que se poderá se expressar com razoabilidade,
fugindo das escaramuças do senso comum que reproduz teoremas dos achólogos de
cátedra.
Muitos
os fazem sem maldade, vejo pessoas de bem e instruídas, mães e pais de família
que sem perceber estão introjetando aos jovens filhos, que a tudo, acompanham,
valores deturpados, fomentadores de intolerância. Muitos desses bons cidadãos (se expressar é um ato de cidadania) não tiveram a chance de estudar a
História e a Cultura afro-brasileira e desconhecem os mecanismos adotados pela
nossa sociedade para ‘embraquecer’ a face negra do Brasil, embalada pelo mito
da harmonia racial, enaltecendo a mistura de raças e policromia do povo
brasileiro (mistura que não se dava e nunca se deu nos altos escalões do poder,
não interditados aos com feições caucasianas).
Talvez por viverem num país onde a tensão racial é
explícita, Marian Anderson e Katherine Dunham estavam conscientes
dos mecanismos acionados pela exclusão racial. Talvez por isso tenha causado estranheza
ao ator Morgan Freeman (justo ele que tem como nome o epíteto Freeman/ homem livre, dado nos Estados
Unidos a escravos libertos, o correspondente ao nosso preto forro) a pergunta sobre o Mês da CONSCIÊNCIA Negra. Para um negro americano isso não
tem cabimento. Pra quê celebrar, pra quê datar algo que já está arraigado
organicamente no interior de cada negro. Eles vivem dia a dia, desde o berço, a
CONSCIÊNCIA negra.
Sim, o Dia da CONSCIÊNCIA NEGRA é uma conquista.